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Nelson Rodrigues foi o primeiro a chamar Pelé de rei, antes ainda da Copa de 58

O termo foi usado em crônica na revista Manchete Esportiva após um jogo do Campeonato Paulista, quando o craque tinha 17 anos

Futebol|Marcos Rogério Lopes, do R7

Nelson Rodrigues escolheu o jovem Pelé como personagem da semana em março de 1958
Nelson Rodrigues escolheu o jovem Pelé como personagem da semana em março de 1958 Nelson Rodrigues escolheu o jovem Pelé como personagem da semana em março de 1958

Existe uma máxima entre os boleiros de que o craque se nota pela forma como ele amarra as chuteiras, antes ainda de tocar na bola. Algo parecido aconteceu com o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, que não precisou ver o gênio Pelé ganhar uma Copa do Mundo para chamá-lo de rei. 

Em crônica publicada na antiga revista Manchete Esportiva em 8 de março de 1958, antes ainda da Copa na Suécia, em junho, na qual Pelé seria essencial na conquista do primeiro título mundial da seleção brasileira, o cronista o escolheu como personagem da semana após um jogo entre América e Santos, pelo Campeonato Paulista daquele ano.

Livro foi lançado em 1993
Livro foi lançado em 1993 Livro foi lançado em 1993

"O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento", escreveu.

Depois de inúmeros títulos do craque na seleção e no Santos, tornou-se comum jornalistas brasileiros e estrangeiros se referirem ao jogador como Rei Pelé ou Rei do Futebol. Mas o pioneirismo é do escritor do Rio, apaixonado pelo Fluminense.

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O artigo entrou na coletânea de textos de Nelson Rodrigues, organizada pelo jornalista Ruy Castro e lançada em 1993 pela Companhia das Letras, com o nome À Sombra das Chuteiras Imortais

Leia o texto na íntegra abaixo:

A Realeza de Pelé

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Depois do jogo América X Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — ”Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

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Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América X Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

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