Ezequiel teve dificuldades para encerrar a carreira
Gazeta PressOs jogos do Corinthians no início dos anos 90 eram antecedidos por um ritual dos torcedores. Enquanto os atletas se aqueciam, após a charmosa entrada em campo, cada um recebia um coro de incentivo que fazia tremer as arquibancadas.
Quando chegava a vez de um volante baixinho, atarracado e de muita raça, a vibração aumentava. De repente, o estádio parecia um templo. E os torcedores, súditos. Reverenciavam, com um grito e os punhos erguidos, uma divindade que os representava pelo suor humano: Ezequiel! Ezequiel!
— Com frequência, sonho que continuo jogando. Me vejo nos gramados, correndo, tocando. Sonho dormindo e sonho acordado.
Ezequiel Ataliba, um campineiro que hoje tem 52 anos, não era apenas um jogador combativo, de pura destruição. Sabia conduzir a bola de cabeça erguida, corajoso, como se desbravasse adversidades da vida em cada corpo a corpo.
Com 1m65, ele corria tanto durante cada jogo que, fosse ele um andarilho, teria, com suas passadas nos gramados, dado mais de uma vez a volta ao mundo.
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— Eu não parei, me pararam. Queria ir mais além, mas estava com 42 anos, ainda tinha a noção das jogadas, pensava em cada uma, mas colocar em prática foi se tornando mais difícil. Fica complicado superar um garoto de 20 e poucos anos na corrida.
Após um período de depressão, a esposa Beatriz e os filhos Helen, de 19 anos, e Gabriel, o ajudaram a se tranquilizar. Gabriel até treina nas categorias de base do Barretos e, como meia-atacante, visa se firmar na profissão. Ezequiel vê com isso a chance de dar continuidade ao seu sonho, mas quer que o filho não se precipite.
— Ele precisa estar firme nos fundamentos, treinar da maneira correta, ter disciplina e se preparar bem, para iniciar uma carreira consistente. Quero vê-lo progredir pela qualidade que ele tem.
Ezequiel sempre foi discreto fora do campo. De poucas palavras, tateava os ambientes para depois se adaptar. Hoje ele mora em Campinas e vive do que ganhou no futebol. Autodenomina-se um observador técnico, autônomo. Analisa o jogo de alguns garotos e os encaminha a pessoas ligadas a clubes. Mas não considera isso um trabalho, porque diz não ser remunerado.
— Não exijo nada. Se no futuro algum jogador que descobri quiser me dar uma gratificação eu até poderia aceitar, mas não é esse o meu maior objetivo.
Amizades e racismo
Tendo iniciado na Ponte Preta, se transferiu logo cedo para o Ituano, onde atuava como meia. De lá, por causa de observadores como ele, despertou atenção do Corinthians. Chegou ao Parque São Jorge em 1990, já como volante. Fez 10 gols em 254 jogos. Em cinco anos de clube, ganhou seis títulos, entre os quais o Brasileiro de 1990 e o da Copa do Brasil de 1995. Voltou para a Ponte Preta e encerrou carreira em 2004.
— Aprendi que todas as conquistas e as boas atuações dos times em que joguei eram por causa da amizade entre os jogadores.
Até em relação aos hábitos, Ezequiel procura não se desvencilhar do que fazia nos tempos de jogador. Mantém a forma se exercitando e joga partidas pelo Master do Corinthians. Até mesmo a alimentação continua a mesma.
— Costumo comer de tudo, como nos tempos de jogador. Nas concentrações, era servido muito macarrão, um prato que continuo comendo, assim como feijão, arroz, bife, salada, ovo, legumes. O meu cardápio é similar ao dos tempos em que atuava.
Por ser negro, ele também foi vítima de racismo durante a carreira, mas prefere analisar a questão por outro lado.
— Entre os jogadores nunca houve racismo em relação a mim. Sempre fui uma pessoa de mente aberta, de bem com todos e, quando este tipo de manifestação acontecia, procurava não me abalar. Temos de saber lidar, é importante conciliar as coisas, ver cada situação. O problema maior é quando a ofensa é por puro racismo. Esta tem de ser abolida.
O ex-jogador tinha a cara do Corinthians. E é reconhecido por torcedores até hoje. Seu estilo aguerrido fez o menino saído da vida humilde em Campinas um dia ser famoso. E permitiu que ele deixasse marcada sua passagem na alma da Fiel. Agora, ele não é mais jogador. Mas ele pode reviver tudo isso, até quando caminha pela rua, solitário. Basta fechar os olhos, puxar pela memória e ouvir, bem lá do fundo.
— Ezequiel! Ezequiel!